Veganismo

5 coisas que eu gostaria de saber antes do veganismo

1. Que alimentos de origem animal não são necessários à saúde

Quando penso na quantidade de anos da minha vida que vivi consumindo carnes, leites e derivados (ovos eu parei de comer aos 7 anos por motivos não relacionados ao veganismo), assumindo que eles eram necessários à saúde, fica um senso de tristeza e lamentação. Demorei muito tempo para entender que era possível ser perfeitamente saudável (e até mais saudável) sem alimentos de origem animal na alimentação. Tempo demais.

A demora nessa compreensão me impediu de buscar apoio nutricional, fazendo com que a minha primeira tentativa de ser vegetariana no final dos anos 90 fosse completamente frustrada e que eu só retomasse o percurso uma década e meia depois, mas já rumo ao veganismo. Lamento ter perdido tantos anos vivendo na ignorância do que minhas escolhas alimentares representavam, sob premissa equivocada de necessidades nutricionais.

2. Que veganismo soa como privação, mas na verdade é um mundo abundante

A maioria das pessoas com quem converso sobre o veganismo me dizem que não conseguiriam ser veganas, porque não se vêem vivendo sem carne, ou sem queijo. Para mim, pessoalmente, deixar o consumo de carne para trás nunca foi um problema – o queijo já foi outra história. Por causa dele, por muitos anos consegui considerar o vegetarianismo (lacto), mas não o veganismo.

O veganismo como um todo me parecia um tanto restritivo, talvez em demasia. Mas a maioria de nós não para de comer alimentos de origem animal porque não gostamos deles. A decisão se baseia em princípios éticos.

E quando você toma essa decisão, que nada tem a ver com paladar, e se vê diante da necessidade de explorar uma nova forma de se alimentar, descobre que as muletas das carnes, queijos e ovos nos mantêm bastante alheios e limitados à diversidade gastronômica dos vegetais.

É um processo de aprendizado, mas nos deparamos com um mundo tão abundante, que não há espaço para sensações de restrição. Não só a grande maioria dos pratos não veganos podem ser recriados em versões veganas, mas pratos que você nunca imaginou que existissem começam a fazer parte do seu dia a dia. São novos sabores, novas combinações, novas sensações.

Infelizmente, essa constatação é resultado do processo em si de transição – e quem não passa por ele não consegue vislumbrar essa realidade. Mas se eu pudesse ter tido essa percepção antes, penso que a decisão de fazer a transição para o veganismo pudesse ter acontecido mais cedo.

3. Que extender o pensamento ético para a forma de interagir com a alimentação e o consumo iria expandir meu senso de propósito.

Existe algo na psicologia chamado “dissonância cognitiva”. Ela corresponde a um desconforto psicológico experimentado quando coisas contraditórias tentam coexistir. Em geral, quando nossas atitudes não se alinham com o que acreditamos ou sabemos ser fato, experimentamos dissonância cognitiva.

Este desconforto psicológico incomoda, então tentamos resolver a dissonância. Essa resolução tem 2 caminhos possíveis: ou alteramos nossas atitudes, ou alteramos nossas crenças ou interpretações dos fatos. Por exemplo: o fumante sabe que o cigarro faz mal (fato), mas continua a fumar (atitude). Para aliviar a dissonância cognitiva, encontra formas de justificar a atitude, tais como “eu não fumo tanto assim”, ou “não consigo agora, mas vou parar um dia”.

Algo idêntico acontece quando você entra em contato com a realidade da indústria de animais, com o conhecimento sobre o impacto negativo das carnes, leites e derivados sobre a saúde e o meio ambiente. Supondo que a maioria de nós é dotado de capacidade de empatia, comer alimentos de origem animal começa a gerar dissonância cognitiva, porque diante da exposição aos fatos inegáveis da indústria, em contradição direta com nosso desejo de manter hábitos alimentares estabelecidos, o choque dessa contradição nos obriga a uma resolução.

No entanto, se não estamos preparados para modificar a atitude de comer carnes, laticínios e ovos, muitos resolvem a dissonância criando distorções de interpretação dos fatos que pareçam suficientemente verossímeis ou justificáveis. Pensamos que talvez não seja assim tão cruel, que comemos carne de abate “humanizado”. Ou que talvez essas informações não estejam corretas. Também é comum dizermos a nós mesmos que de nada adianta mudarmos, quando o resto do mundo não irá mudar junto.

Nos agarramos a qualquer informação que nos apresentem para justificar o consumo animal, como por exemplo “dependemos de carne para sobeviver, temos caninos, nossos ancestrais comeram carne, então somos carnívoros, a natureza é violenta e animais matam uns aos outros, tenho pena dos animais mas não consigo viver sem queijo, etc, etc, etc”.

A real diferença entre um vegano e um não vegano com capacidade de empatia e conhecimento dos fatos, é que o vegano, em algum momento, resolveu essa dissonância cognitiva de outra forma: através da alteração da atitude. Ao passo que quem não muda resolve a dissonância através de alteração da percepção dos fatos. E é por isso que o ativismo vegano só funciona quando consegue criar alteração de paradigmas.

Mas quando você assume esta mudança de postura, o que pode ainda parecer a outras pessoas restritivo, passa a ser para você libertação e alívio. Libertação de uma engrenagem sócio cultural de morte, tortura e crueldade. Alívio da dissonância cognitiva, que nos tirou da negação dos fatos e da hipocrisia social prevalente, nos levando a uma vida de prática alinhada a princípios.

É muito comum a analogia entre a entrada no veganismo e o filme Matrix, que mostra uma massa majoritária vivendo uma realidade negacionista, incapaz de perceber a verdade e pessoas que são libertas do maquinário de mentes somente quando estão prontas para tomar a pílula da verdade e a enxergá-la em toda a sua barbárie.

E a analogia, na verdade, prossegue coerente, quando o filme nos mostra que este grupo de pessoas que optaram pela verdade em detrimento do conforto encoberto pela mentira, passam a adotar postura de responsabilidade com os demais, que ainda dormem em seus casulos, explorados por sua mente como fonte de energia, cultivados aos bilhões para o benefício do maquinário da inteligência artificial.

Assim também acontece com o ativismo vegano, em formatos diversos – é algo que deriva do despertar de um senso de responsabilidade com a quebra da opressão aos animais criados aos bilhões para o benefício do maquinário da indústria, utilizando-se de mentes adormecidas, guiadas por hábitos sócio culturais que sustentam o maquinário opressor operando.

De repente, a coisa ganha uma qualidade filosófica e, aos seus propósitos de vida, soma-se o senso de responsabilidade com a ruptura de paradigmas opressores, seja através de posturas individuais, de propagação de informação, ou de ativismo propriamente dito.

E este também é um processo que só se vivencia na prática. Como diz Morpheous, no filme Matrix, “ninguém pode lhe explicar o que é a Matrix. Você tem que ver por si próprio”. Mas essa é uma das coisas que eu gostaria de saber antes de me tornar vegana: que este despertar, este alinhamento entre minha forma de pensar e minhas atitudes práticas, me traria uma ampliação do meu senso de propósito, do compromisso com a vida e rejeição de todos os tipos de opressão e exploração. Seja contra animais humanos ou não. E isso hoje motiva a escrita dos meus textos, minha prática profissional de coaching, meu ativismo por um mundo melhor, com pessoas mais saudáveis e mais conscientes.

4. Que se alimentar de forma saudável dentro do veganismo exige esforço, mas desenvolve amor pelos alimentos, respeito pelo nosso corpo e habilidade culinária.

Veganos existem de todos os tipos. Nem todo vegano é saudável, mas os que optam por ser, deparam-se com um mundo não vegano, que nos coloca em contato com a necessidade de um envolvimento mais próximo e constante com o preparo dos alimentos. E isso, no início, dá trabalho, porque nos tira da zona de conforto.

No entanto, esta prática – somada ao senso de propósito descrito acima – começa também a modificar nossa relação com a comida. Quando encontramos em nós a empatia para cuidar dos animais e do planeta através de escolhas alimentares, fica incoerente não cuidar também de si próprio. Que impacto podemos ter, se não tivermos saúde? De que adianta respeitar os animais e a natureza, se não temos auto respeito? De que adianta tomar para si a responsabilidade de se opor à violência contra qualquer outro, enquanto violentamos nosso próprio corpo com escolhas alimentares que nos fazem mal?

O despertar do cuidado com o outro, desperta também o cuidado individual. O investimento de tempo e esforço no preparo de refeições veganas saudáveis passa a ser representativo do nosso carinho, empatia e generosidade com nossa própria vida, além da vida dos animais que optamos por defender. Para manter uma variedade saudável, aprendemos receitas novas, formas novas de preparar alimentos, o que em muito expande nossa habilidade culinária.

E, como tudo na vida que exige esforço, a prática diária desenvolve não só habilidade, mas também naturalidade para com o processo em si. Não demora muito e estes hábitos se estabelecem como normalizados, já não nos parecem mais tão trabalhosos e aparece um saldo positivo no formato de saúde, de novas habilidades, de auto cuidado e auto respeito. Não tem preço.

5. Que a transição para o veganismo nem sempre é um processo linear, nem sempre se completa da noite para o dia e que cada etapa tem seu aprendizado.

Lembro-me claramente do momento exato em que tomei a decisão de ser vegana. Todo um longo processo de consciência o precedeu, mas quando a ficha caiu, não foi em etapas: foi em um único estalar da mente.

A convicção foi tão impactante, que no dia seguinte eu já não comia mais nada de origem animal. Me pareceu que essa convição seria suficiente para todo o sempre da minha existência.

E, de fato, os 7 meses seguintes fizeram parecer que assim seria. Até que, belo dia, me vi em uma situação em que estava com muita fome, não tinha me planejado adequadamente, estava na rua, sem tempo para procurar opções veganas, e comi um salgado com queijo.

A sequência foi um sentimento de culpa, de incapacidade de me manter, na prática, alinhada aos meus princípios éticos. E não foi a única vez que aconteceu. Fosse por falta de planejamento, ou por ceder a impulsos esporádicos de consumir especificamente o queijo, que me manteve viciada por grande parte da minha vida, fato é que estes momentos apareceram como pedras no caminho.

O que eu não fui capaz de perceber, em muitos deles, foi que isso era parte do meu processo. Que me ensinariam lições diversas, incluindo sobre a necessidade de me planejar melhor, sobre a condição humana em sua imperfeição – e também sobre resiliência.

Eu entendo quem defende que não pode se denominar vegano quem abre exceções. Porque, de fato, o veganismo em sua essência, pressupõe uma postura ética que não tem espaço para o “de vez em quando”. É como se dizer que um marido violento que espanca a esposa, quando muda de postura, passa a escorregar aqui e ali e a espancá-la “só de vez em quando”. Realmente não faz sentido.

Mas saindo do campo unicamente ideológico e olhando para a tentativa de aplicação da filosofia na prática, percebemos que o ser humano é complexo, que está inserido em contextos diversos, que enfrenta desafios de natureza diversa. E que, em consequência, ideologia e prática, podem entrar em conflito em alguns momentos.

E aqui entra a diferenciação fundamental entre o marido que espanca a esposa e o vegano que escorrega no queijo (não literalmente): ambos produzem consequências catastróficas e ao menos uma vítima. Mas o espancador utiliza seu “deslize” como prova de que seu comportamento melhorou (antes acontecia todo dia, agora acontece só uma vez por semana), ao passo que o vegano utiliza seu “deslize” como prova de que ainda tem muito a melhorar. A intenção do primeiro é de justificar o erro. A intenção do segundo é corrigir o erro. O primeiro faz esforços de mudança de comportamento para não se complicar, com base em empatia por si próprio. O segundo faz esforços de mudança de comportamento para se posicionar, com base em empatia pela vítima.

Assim, talvez estas pedras no caminho do vegano não sejam ideais, nem lhe confiram a possibilidade de, diante de uma comunidade com percepções diversas sobre o rótulo, usar o crachá de vegano. Mas isso não tira dele a sua autêntica intenção de fazer o bem, de aprender com o processo e de refinar sua capacidade em se manter no curso.

Penso que não possa se auto denominar vegano, aquele que, assim como o espancador, utiliza os escorregões como desculpa para continuar escorregando. Mas os que utilizam escorregões para fortalecer sua capacidade de manter o curso, são no mínimo ideologicamente alinhados, sim, com a filosofia vegana, tentando coexistir com um mundo não vegano e fazer o melhor dentro do possível e praticável – que é, inclusive, condição explícita da ideologia. Não está lá para acomodar os acomodados. Mas porque considera a complexidade das existências dentro de diversos contextos, com a coerência de compreender que, mesmo aqueles que nunca escorregam na alimentação, não têm como evitar uma parcela do que já foi construído no passado com base em crueldade animal, como é o caso de muitos medicamentos necessários à sobrevivência, vacinas, compostos químicos e processos de fabricação de inúmeros produtos, etc.

Não existe vegano perfeito, não existe ser humano perfeito, não existe veganismo absoluto, porque é impraticável ter consciência de tudo o que compõe o mundo que nos cerca e como foi construído.

Assim, gostaria de, antes de me tornar vegana, ter tido a consciência de que o processo não seria linear, para poder ter um pouco mais de generosidade e compreensão com ele – e empatia por mim mesma. Para olhar situações nas quais me foi impraticável ser a vegana de crachá, como parte do aprendizado de ser vegana na prática. Continuo não sendo a melhor vegana que posso ser. Mas sou a vegana que internalizou a filosofia e que busca ser melhor a cada dia.

Abraçar estas compreensões também nos permite ter empatia por outras pessoas, em estágios diferentes do seu despertar e de suas possibilidades individuais. O mundo que idealizamos não é exatamente aquele no qual o preço de um número reduzido de vítimas é visto com leniência. Mas se o único critério que utilizamos para definir quem constrói este mundo ideal é quem se encaixa nos comportamentos ideais, alienamos todos aqueles que querem o mesmo mundo, esforçam-se para ajudar a construí-lo, mas não encontram acolhimento na sua imperfeição, da qual na verdade todos compartilhamos.

E aí, uma construção de ideal que já é tentada por uma minoria, não consegue ter impacto significativo no mundo real. E que tipo de estratégia é essa que exclui as melhores intenções dotadas de comprometimento ideológico, ainda que imperfeitas?

Não é passar a mão na cabeça dos comodismos. É extender empatia pelos processos alheios dotados de intencionalidade genuína e tentativas autênticas. Penso que, sem isso, o ideal se aproxime mais do utópico do que do possível. E, com isso, ninguém ganha: nem veganos, nem não veganos, nem animais, nem os ecossistemas, nem a sobrevivência de qualquer espécie animal, incluindo a nossa própria.

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