Alimentação saudável e o contexto das escolas
Em muito caminhamos na consciência das escolas infantis e de ensino fundamental sobre a necessidade da aplicação e ensino sobre uma alimentação saudável. E em muito ainda nos falta caminhar.
Falando especificamente no ensino particular (sobre as escolas públicas falamos em outro momento), escolas com diferentes filosofias de abordagem, somadas ao caráter heterogêneo de práticas alimentares e valores adotados por famílias de cada aluno, torna este um ambiente complexo de mensagens, práticas, regras, bons e maus exemplos.
A filosofia de ensino que mais se aproxima de um modelo de ensino sobre alimentação realmente saudável é o sistema Waldorf. As demais, apenas pincelam a qualidade da alimentação como prioridade escolar – por vezes na prática, outras vezes só mesmo em teoria.
Vou contar uma história:
Quando fui escolher a primeira escola onde meu filho estudaria, o questionamento sobre a abordagem adotada com relação à alimentação estava entre meus tópicos prioritários a serem conversados. Escolhi uma escola que passou uma mensagem de filosofia como um todo, que estava suficientemente alinhada com nossos valores. Com relação à alimentação, a diretoria me passou as informações, detalhando as opções de almoço e jantar para famílias que optassem por essas refeições, falou sobre as diretrizes de lancheiras com as restrições que a escola fazia, explicou sobre os aniversários – o que era e não era permitido enviar para essas comemorações em sala de aula e ressaltou que toda essa orientação vinha do trabalho de uma nutricionista responsável na escola.
Um lindo discurso. Refeições balanceadas preparadas na cozinha da própria escola, um cardápio com sugestões de combinações para lancheiras, para cada dia da semana (montado pela nutricionista), bolos de aniversário teriam que ser caseiros, não poderiam ter recheios ou coberturas; salgados só assados. Expressei satisfação com a postura da escola e expliquei nosso estilo alimentar (que ainda não era vegano na época, mas já muito saudável) e passei por escrito as restrições que a escola deveria observar com ele: não dar frios ou embutidos, frituras, açúcar refinado, carboidratos refinados, industrializados ou sucos artificiais.
O cardápio com sugestões para o lanchge não era lá dos mais realmente saudáveis, mas dentro do que é considerado saudável pelo senso comum, estava adequado e a iniciativa em si era boa. Um bom exemplo de avanço na direção certa, embora ainda longe de ser ideal. Eu nunca segui as sugestões, porque meus parâmetros de alimentação saudável eram mais exigentes. Assim, comecei a enviar lanches bem distintos do que aparecia na lancheira de outras crianças – que, aparentemente, também não seguiam o cardápio, mas em sua maioria, ia pelo viés oposto – o da priorização da praticidade.
As festas infantis começaram a acontecer. Na primeira delas, meu filho recusou o bolo e o brigadeiro. Na hora da saída, a professora quis conversar comigo: “Como você fez para o seu filho recusar bolo e brigadeiro??” – perguntou curiosa, com ar de elogio. Eu, na verdade, não havia dado a ele nenhuma instrução específica. Ele simplesmente não estava habituado a comer doces, a presença de bolos em casa é esporádica e, quando acontece, são bolos bem diferentes, feitos com ingredientes integrais. Eu não havia verbalizado uma instrução para ele, mas na construção dos hábitos alimentares desde a introdução de sólidos (na verdade, desde a gestação), eu havia dado várias instruções metabólicas que construíram nele o paladar para alimentos saudáveis. E bolos e brigadeiros não estavam entre eles.
Primeira festa, segunda festa, terceira, quarta… elas começaram a acontecer com frequência, em espaços de tempo curtos. Comecei a notal algo curioso: bolos decorados cobertos com chantilly, vez ou outra coxinhas e quibes fritos e, o mais popular salgado: mini hot dog. Popular entre as crianças e também entre as mães, que adoravam encomendar através de uma conhecida confeitaria da cidade, com preços bem arativos.
Belo dia, a professora me diz na saída que meu filho havia comido bem na festa. Naquela noite – e nos 3 dias que se sucederam – lidamos com uma forte diarréia. Preocupada, fui me informar com a escola sobre o que, exatamente, ele havia comido na festinha. Sim, o mini hot dog. Alguns…
Meu filho nunca antes havia comido salsicha. Isso não fazia parte nem da minha alimentação antes do nascimento dele. No comunicado por escrito que deixei com a escola, embutidos estavam especificados como tipos de alimentos que ele não deveria comer. Essa foi a primeira conversa que precisei ter com a escola sobre o assunto.
E aí, semanalmente a escola fazia também o lanche coletivo. A idéia, em teoria, é boa: cada semana, 3 ou 4 mães são responsáveis por enviar quantidades suficientes de alimentos para todos os alunos da sala (uma envia os sucos), em sistema de rotação, coordenado pela própria escola. Os tipos de lanche as professoras definem. E, além dos lanches coletivos regulares, havia também os temáticos. Isso serve para gerar experimentação e introduzir alimentos novos às crianças.
Quando eu era uma das mães responsáveis pelo envio de parte do lanche, os pedidos específicos que vinham da escola em nada se pareciam com os tipos de alimentos que eu costumeiramente enviava na lancheira. Mas também não eram pedidos estranhos, como de algum alimento frito. Não que isso fosse empecilho para algumas mães – houve ocasião de ser enviado um prato encomendado de mini coxinhas fritas, em substituição aleatória ao lanche solicitado.
Eu tolerava a atividade do lanche coletivo a contragosto. Primeiro, porque eu não sou muito adepta à idéia de terceirizar a alimentação do meu filho – sempre fui muito proativa no planejamento das refeições, na forma como são preparadas e ingredientes utilizados. Segundo, porque se ali a idéia era gerar experimentação, idealmente seria de alimentos saudáveis – o que nem sempre era o caso. Terceiro, porque incentivar a experimentação do meu filho de alimentos não necessariamente saudáveis, representava um retrocesso em um trabalho de anos de construção de paladar. Quarto, porque ele não estava acostumado àquele tipo de alimentação e já tínhamos o histórico do revertério intestinal causado pelo ínfame mini hot dog. Mas para não interferir na socialização, nem colocá-lo em posição de ostracismo, as sextas feiras eram o dia em que eu exercitava minha melhor capacidade de tolerância. E fui conversando com ele, ensinando como escolher entre os lanches que estavam disponíveis, para minimizar potenciais problemas.
Ele, na verdade, não se interessava muito pelas opções, como já era de se esperar. Enquanto isso, minha reputação de mãe “exagerada com a qualidade da alimentação do filho” crescia rapidamente entre professoras, diretoria e as outras mães.
Foi na Semana do Índio que a coisa se complicou. Veio na agenda um pedido de envio de cocada branca. Minha primeira reação mental foi de total confusão. Mas a escola não era contrária ao envio de doces? Em que tribo indígena da história estão se baseando, com práticas de alimentação que envolvessem açúcar refinado e leite condensado? Que mensagem exatamente a escola pretende passar às crianças quando ensina que o índio, historicamente, come cocada?
Eu não mandei a cocada. Mas nesse dia, a mãe que enviou a mandioca, a enviou frita. A mãe para quem foi pedida a batata, enviou bolinho frito de massa de batata com recheio de queijo e batata frita. A mãe que ficou a noite inteira lidando com o segundo caso de diarréia fui eu. Enquanto continuava tentando entender em que cenário essas pessoas se baseavam para supor que bolinhos e tubérculos fritos eram representativos do estilo de vida dos índios. Este foi o momento da segunda conversa com a escola, muito em função de tentar dar sentido à discrepância entre a política alimentar que a direção havia me vendido e a prática, em total oposição, permitida nestes lanches coletivos e festas de aniversário. Suspeito que neste momento, apesar da aparente indignação da diretora (afirmando não saber sobre o ocorrido), a imagem da “louca da alimentação saudável” tenha se solidificado perante a escola.
As tentativas de contribuir, através do grupo das mães, sugerindo alternativas melhores para os lanches coletivos, foi absolutamente frustrada. Com raríssimas exceções, a maioria das mães não conseguiu olhar para a minha tentativa como forma de otimizar a alimentação de todas as crianças. Ao invés disso, frases como “não faz mal comer uma fritura ou um doce de vez em quando” e “tudo em moderação” foram a tônica principal das conversas. Não houve coro suficiente para tentar implementar a mudança.
Enquanto isso, os aniversários continuavam acontecendo. Entra ano, sai ano e essas crianças vão ficando em uma regularidade de consumo, no mínimo semanal, de altas quantidades de doces, carboidratos simples, embutidos. Nas refeições de almoço e jantar, uma prevalência de sopas e macarrão, sem muita variedade nutricional. Frituras ainda sendo enviadas em lanches coletivos, sem que a escola se manifestasse sobre isso. As professoras elogiavam as lancheiras do meu filho e a facilidade com que ele sempre comeu alimentos muito saudáveis, enquanto recusava os problemáticos. Mas nenhum tipo de orientação era dada às famílias que enviavam sucos artificiais, salgadinhos de pacote, bolachas recheadas, doces e afins.
Há de se respeitar as escolhas alimentares alheias, é certo – e, mais ainda, as limitações de cada família – algumas até, que prefeririam enviar lanches mais saudáveis, mas acabavam optando por industrializados por limitações circunstanciais. Mas meu questionamento aqui não é este – e sim o contraste entre o discurso e a prática da escola.
Ofereci à direção, mais de uma vez, um workshop gratuito para as famílias, para apresentar opções de lanches rápidos, fáceis, nutritivos e atrativos para as crianças. Nunca a escola manifestou interesse – pelo contrário, demonstrou até uma certa irritação com a abordagem do assunto.
O contraste ficava cada vez mais claro, entre o nosso estilo de alimentação e o que era praticado na escola. Mas foi no aniversário do meu filho que aconteceu algo surpreendente: o bolo integral sem açúcar refinado, os espetinhos de frutas, a paçoca de aveia (também sem açúcar refinado) – tudo o que foi enviado no nosso formato teve aceitação praticamente unânime entre as crianças. Mais surpreendente ainda: os primeiros a acabar foram os espetinhos de frutas. A ausência de frituras, de refinados, carboidratos brancos e embutidos não foi um problema.
Isso nos mostra que essas práticas sociais, embora enraizadas e com valor cultural, não precisam acontecer em formatos que perpetuem hábitos de alimentação nocivos. No entanto, em nome de cultura, comodidade e comportamento de massa, a massiva maioria de famílias compactua com a manutenção destes hábitos.
E como essa é a prática comum, quando você fica fora da curva por priorizar valores de alimentação saudável, estes desafios são inevitáveis. Palavras não ditas – ou às vezes ditas, com ou sem tato -, olhares de julgamento, opiniões sobre o seu “radicalismo” são uma camada adicional de incômodo. Quando se introduz a palavra “vegetarianismo” ou “veganismo” então, aí sim fica configurada a percepção de “extremismo”. Raras são as situações em que alguma mãe manifesta interesse em entender por que você tem uma postura diferente e se há ou não sentido ou valor nisso.
As falas de “moderação” e “Ah, não faz mal comer um doce uma coxinha de vez em quando”, em geral minimizam a frequência de duas vezes na semana em que isso costuma acontecer – uma em um aniversário, a outra no lanche coletivo – e isso, só na escola.
E aí, temos duas opções: ou priorizamos nossos valores ou priorizamos as posturas e opiniões alheias, inclusive da própria escola. No meu caso, priorizei nossos valores.
Nos últimos seis meses em que meu filho estudou nessa escola específica, tanto a professora principal quanto a assistente tinham valores muito parecidos com os nossos. Na primeira reunião do ano, já ciente da reputação das lancheiras do meu filho e da minha postura com relação à qualidade da alimentação (sim, minha reputação extrapolou os limites da sala e se espalhou pela escola), reservou tempo para conversar especificamente comigo sobre como pretendia colocar em prática as restrições a alimentos prejudiciais em lanches coletivos e aniversários. Em partiular, expressou desconforto com relação à falta de atitude da escola, bem como preocupaçao com a qualidade da alimentação que via em grande parte das lancheiras. Ela cumpriu o que se propôs a fazer, enviou comunicados, teve conversas em reuniões de pais e professores. A situação melhorou superficialmente, mas como uma andorinha só não faz verão e os valores da escola não se alinhavam com essa filosofia, o trabalho se perde como agulha no palheiro. Existem pessoas com essa consciência nas escolas, mas o investimento em educação alimentar, não só junto às crianças como junto aos pais, ainda está muito aquém do que poderia ser feito por instituições de ensino, para ser entendido como categoria de prioridade e para construção de hábitos e consciência alimentar.
Não digo que a tarefa seja fácil. Escolas são ambientes heterogêneos, onde valores diferentes podem se complementar, mas também se opor uns aos outros. E a tarefa de agradar a gregos e troianos não é das mais simples. Mas não há como argumentar contra o valor do ensino de práticas alimentares saudáveis. E quando uma instituição de ensino, que tem papel junto às famílias, de construção de conhecimento, valores, hábitos e socialização, pratica conivência com maus exemplos, sem demonstrar interesse ou esforços no sentido da priorização dos bons exemplos, isso eu considero problemático.
O que fica de lição é que, cultural e institucionalmente, ainda estamos engatinhando na adoção de posturas que reflitam uma compreensão dos impactos que a alimentação tem sobre o desempenho escolar, o humor das crianças, a capacidade de foco, o desenvolvimento intelectual, motor e cognitivo, os níveis de agressividade, o aparecimento de doenças ainda na infância e, depois, na idade adulta. E que atitudes que muitas escolas estão em posição ideal de implementar, nem sempre são priorizadas ou, ainda pior, são negligenciadas, para manter um status quo de conformidade sócio cultural. Quando, idealmente, instituições de ensino deveriam ser as primeiras a liderar esse tipo de iniciativa – e se orgulhar disso.
Quanto às mães que tecem farpas e julgamentos, pode-se teorizar sobre carência de informação, dificuldade de analisar as próprias escolhas e aceitar que talvez existam caminhos melhores, sobre a mesma conformidade sócio cultural. Mas também precisamos falar que, se os julgamentos nos incomodam, não podemos esperar reciprocidade se também julgamos. Porque cada família, cada mãe tem seu contexto de vida, seu nível de conhecimento e acesso à informação, sua escala de valores e sua forma de lidar com a maternidade.
Pouco tempo depois, tomei a decisão de mudar meu filho de escola. As discrepâncias entre os discursos e as práticas, aos poucos se mostraram evidentes em outras áreas também. A questão da alimentação não foi o fator determinante, mas certamente entrou na equação.
A escola seguinte teve uma postura dramaticamente diferente. Houve o interesse em projetos de educação alimentar junto a alunos e famílias, houve compreensão e respeito pelas nossas práticas e estilo de vida, houve até mesmo uma busca de compreensão das nossas motivações.
Para você, mãe, que está lendo esse texto, se está também fora da curva, se sua família pratica hábitos muito saudáveis de alimentação e isso gera problemas similares no ambiente escolar, meus cumprimentos pela sua resiliência, persistência e priorização de um bloco tão fundamental na formação de seu(s) filho(s). Valorize seus princípios, porque a vida não tem ensaio: se acertamos, acertamos e se erramos, erramos. Se a escola não reforça os valores relativos à alimentação que você ensina em casa, um caminho possível é aproveitar a oportunidade para explicar à criança sobre as diferenças, sobre os motivos que embasam as escolhas alimentares da família e, assim, a percepção da criança não se contamina com os maus exemplos, enquanto ela aprende também a respeitar quem faz diferente e ajuda a educar apenas quem demonstra interesse em entender o que ela faz e por que.
Essa construção eu fiz aos poucos com meu filho e hoje vejo os resultados positivos dessa abordagem. Certo dia, no caminho da escola pra casa, ele me contou que a professora havia dito em sala que todas as crianças deveriam comer mais carne para crescerem fortes. A fala da professora, embora ciente da nossa opção pelo veganismo, não foi intencionalmente opositora. Mas gerou questionamento nele. “Por que ela disse isso, mãe?” Expliquei que nem todas as pessoas têm o entendimento sobre os problemas relacionados ao consumo de carne, que muitas famílias comem carne, que isso é o que é geralmente ensinado, mas que nós fazemos diferente porque a mamãe estuda exatamente isso e aprendeu que isso não é o melhor pra gente. Sensação de trabalho cumprido se formalizou, quando a resposta dele a isso foi: “A gente tem que respeitar, né mamãe? E se alguém quiser entender, eu ensino.”.
Isso, filho… Isso.
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